quarta-feira, 14 de abril de 2010

Kid Foguete, Hitler e Gordos Barbudos

O tic-tac do relógio me assusta. Ele me diz que o tempo está indo pra frente e que não há volta. Uma hora todo mundo tem que encarar seu destino. Não que eu acredite em destino, mas uma hora ou outra alguma coisa muito boa ou muito ruim acontece na vida das pessoas, e elas chamam isso de destino. Eu chamo de Kid Foguete. E no meu caso, isso era uma coisa muito ruim.

Eu fazia parte de uma liga de boxeadores anti-profissionais no cais do Rio. Éramos do tipo que fumava antes de uma luta, mas só um fumava depois. Pois lá estava eu, vendo aquele chão do pátio cinzento e frio, cheio de bitucas com sangue no filtro. Até o sangue era cinza. Algumas delas nem eram de boxeadores. Havia algumas camisinhas pisoteadas, cinzas também. Meu Deus, quem usa esse tipo de coisa aqui? Certamente nenhum dos marujos, já que nenhuma doença deste mundo poderia competir com a quantidade de conhaque e cigarro que consumiam. E eles já estavam acostumados com coceiras, algumas perebas a mais não fariam diferença.

A roda estava formada, eu numa ponta e Kid Foguete na outra. Conseguia sentir seu bafo daquela distância. Aquele baixinho careca desgraçado. Tinha uma tatuagem de âncora no braço direito. Dizem que quando ele estava voltando de uma viagem em um navio pesqueiro, puxou a âncora que, sem querer, trouxe uma baleia junto. Ninguém viu. Mas ainda assim dizem por aí, e ninguém vai discordar. Diz que resolveu tatuar aquela âncora só para ninguém esquecer, mas eu acho que ele viu algum fortão em um filme com uma daquelas.

- Vou fazer você sonhar nunca ter saído da boceta da sua mãe. - gritou ele, com um sotaque nordestino.

Eu sorri. Que vontade de cagar.

Nisso, Hitler me passou um estilete. No momento não gostei da idéia de usar uma arma, mas depois pensei que talvez pudesse usá-la para me matar no meio da luta, para acabar com a dor. Coloquei do lado esquerdo do meu calção.

Hitler era um alemão que tinha perdido a memória e acabou caindo no nosso cais uns 2 anos atrás. Ninguém sabia o nome dele, nem ele, então o chamávamos de Hitler, porque era a única coisa alemã que conhecíamos. Tentei ensiná-lo um pouco de português, mas parei quando ele começou a apanhar depois que aprendeu "filho da puta". Acho que ele pensou que significasse "olá".

A luta estava prestes a começar e eu estava morrendo de frio e com vontade de cagar. Olhei para os lados e comecei a imaginar qual foi o ponto decisivo na minha vida que me levou a estar ali. Quando era criança, conseguia desmontar meus brinquedos e montar novos a partir das peças. Tinha certeza de que seria um engenheiro quando crescesse. Talvez estivesse construindo um avião se as coisas fossem diferentes. Mas naquele dia, a única que iria voar seria a minha cara, antes de atingir o chão.

Começou a luta e Kid veio com tudo. Quando me preparei para desviar de algum soco, recebi uma cuspida no olho esquerdo e um chute no saco. Caguei nas calças. Filho da puta, boxe não era só com as mãos? Caí duro, e cagado, no chão e quando olhei, a multidão de gordos barbudos estava espancando Kid Foguete, mas por alguma razão estavam batendo uns nos outros também, o que não demorou muito para começarem a bater em mim. Desgraçados, eu já estava no chão. Só conseguia ver alguns dentes e corpos gordos caindo. Me encolhi no chão e fechei os olhos. Recebi mais uns cinco chutes e depois tudo parou. Voltei a abrir os olhos quando ouvi algumas risadas e o cheiro de cigarro.

Todos estavam conversando normalmente. Os que estavam de pé, é claro. Eu não era um deles, nem Kid, nem Hitler, coitado. Esperei. Não sei bem o que, mas esperei e depois me levantei, tomei um gole de conhaque que me deram e fui devolver o estilete para o Hitler. Ele levantou também, com um sorriso bobo e falando em alguma língua estranha. Correu para o orelhão, falou alguns minutos e depois ficou sentado no pátio. Nisso, Kid levantou xingando todo mundo, estava com o lado esquerdo do rosto parecendo uma abóbora. Eu corri para dentro do barco me esconder dele, mas hoje falo que foi para trocar a calça. Quando voltei, todos estavam olhando uma limosine com uma bandeira vermelha com uma cruz azul deitada. De dentro saiu um velho que abraçou Hitler, dando muitas risadas. Ele olhou pra gente e sorriu, depois olhou pra mim, me mostrou o dedo do meio e foi embora. Merda, perdi meu único amigo.

2 comentários:

Nathalia disse...

hahahah, adorei. continua! continua!

Juls disse...

bem sujo mesmo, mais que cinza. estilo HQ, daqueles de usam muitos riscos cruzados para sombrear